Existe (muita) bondade no mundo

E no nosso país também, por extensão. O mundo está repleto de bondade. Talvez seja difícil perceber isso, imersos que estamos nesse clima de programa policialesco vespertino. Mas as pessoas boas estão aí, por toda parte, do seu lado, e talvez você nem perceba.

As inúmeras formas de bondade; apresentadas como generosidade, caridade, humildade e outras tantas; certamente superam em número as ações de pessoas mal intencionadas ou pouco esclarecidas que parecem predominar no noticiário. É fácil falar do mal, é fácil vender o mal. O mal alimenta o medo, que por sua vez gira um sem número de engrenagens extremamente lucrativas.

* * *

Hoje o motorista da van que me leva para o trabalho passou direto pela minha casa. Eram 5:15 da manhã, o sol não havia nascido e o medo – olha ele aí – me inibiu a esperar na calçada, do lado de fora das grades do meu condomínio. A van reduziu a velocidade, mas não parou, e diante da minha aparente ausência o motorista seguiu viagem, perseguido a pé por mim.

Evidentemente eu não a alcancei. Esbaforido, correndo com dificuldade por conta dos sapatos de segurança com biqueira de aço e sem nenhum tipo de amortecimento, eu apenas conseguia berrar “ei!” freneticamente. Inconsciente dos meus apelos, o motorista seguia.

Um casal sobre uma moto passou ao meu lado e supliquei que eles tentassem interceptar a van e avisar que – sim! – eu estava lá. Eles tentaram, mas minha condução seguia longe e cada vez mais rápido até desaparecer em uma esquina. Mais algumas dezenas de metros correndo e eu cheguei no cruzamento. O casal havia parado, a moça da garupa desmontado e o rapaz disse:

É da sua empresa? É pra você ir pro trabalho? Você quer subir? Eu te levo e a gente alcança ela.

Aceitei sem pensar muito. Montei na garupa e perseguimos a van por três quarteirões, finalmente a interceptamos. Eu balbuciei algum agradecimento ininteligível finalizado por um efusivo “que Deus te abençoe” e embarquei.

O fato é que um casal de completos desconhecidos, cruzando com um homem berrando em uma rua escura de madrugada, se ofereceu para ajudá-lo a despeito dos riscos – ela por ficar sozinha esperando na esquina e ele por ter um estranho na sua garupa.

É algo pequeno, e de certa forma bobo, mas isso foi o que salvou um dia que começou de maneira péssima para mim. Algo assim não é pauta de notícia, mas acontece todos os dias, em tantos lugares, com tanta frequência, a despeito de nosso desconhecimento, mas sobrepuja as tantas tragédias que nos acostumamos a ouvir – e narrar – todos os dias.

Somos reféns de uma armadilha mental chamada viés de confirmação. É aquele mecanismo estranho que nos faz ver apenas aquilo que nos interessa, ou aquilo em que acreditamos. Sabe quando você comprou uma roupa legal e de repente parece que tem centenas de pessoas usando a mesma roupa que você? Pois é, viés de confirmação. Elas estavam lá, mas você não via. Se o mal nos amedronta e ocupa grande parte do nosso pensamento, nós o enxergaremos com muito mais frequência.

Ao casal, que muito provavelmente jamais lerá este texto, meu mais sincero “obrigado”, não apenas por salvar meu dia, mas por me lembrar da presença ubíqua da bondade neste mundo e com isso ter desembaçado minha luneta da visão do bem.

O que 50 dias sem carro me ensinaram

Tive a infelicidade de ser o recheio do sanduíche, o carro do meio em um engavetamento. O estrago foi o suficiente para que o carro saísse de circulação imediatamente e a partir deste instante minha bicicleta foi o único veículo próprio que eu podia usar.

Aqui cabe uma nota de explicação. Eu efetivamente uso a bicicleta como meio de transporte. Eu sou um entusiasta da bicicleta, adoro a sensação de ir e vir sem estar preso ao tráfego, de poder desmontar e andar na calçada quando necessário e da agilidade incrível que a bicicleta proporciona em deslocamentos curtos (até 5 km). Entretanto, eu detesto suar. Por isso, sempre dei preferência a usar a bicicleta na hora do rush, quando sair de carro é uma decisão – no mínimo –  pouco sábia e o clima é mais agradável.

A primeira coisa que a privação do carro me ensinou é que priorizar a bike à noite era comodismo. Evidentemente, pedalar sob o sol de Fortaleza ao meio dia não é uma experiência propriamente agradável, mas não é o fim do mundo e no final das contas é bem mais contornável do que eu podia – ou me permitia – imaginar. A consequência disso foi concluir que a quase totalidade dos meus deslocamentos podia ser feita sem prejuízo sobre duas rodas.

Isso leva ao ponto seguinte: e quanto aos deslocamentos que eu não poderia fazer de bicicleta? Nesse período tive que me apresentar em uma entrevista. Camisa branca, engomada, gel no cabelo. Suar estava fora de cogitação e o horário, 13:30, praticamente impedia o deslocamento de bicicleta. Tomei um ônibus, dei uma boa margem de antecedência para lidar com os imprevistos e cheguei na hora – meia hora adiantado, na verdade. E foi a única vez nesse período em que precisei fazer isso.

Os outros deslocamentos não foram tão simples assim. Eu considerava o carro indispensável para fazer compras e levar a roupa pra lavar – moro num apartamento pequeno, onde é praticamente impossível instalar uma máquina de lavar sem gambiarra. Me vi obrigado a ir a pé ao supermercado mais próximo, que não é aquele onde habitualmente vou. O incômodo não era o deslocamento, mas o fato do supermercado ser mais lotado e não ter frutas e verduras frescas, sendo preciso catar para achar vegetais em bom estado. Quanto às roupas, não houve jeito: precisei pedir carona duas vezes pois não havia como eu ir e voltar com duas trouxas enormes de roupa fosse de ônibus, a pé, ou de bicicleta.

E veio a segunda lição. É possível sim fazer compras e levar trouxas imensas de roupa em uma bicicleta. Basta observar: existe uma frota (quase) invisível de trabalhadores transportando botijões de gás e garrafões de água pela cidade. Eles chegam a levar 100 kg de carga na garupa. Possível é, basta o ferramental correto: uma bicicleta cargueira. Quando me lembrei disso passei a fantasiar em ter uma cargueira e compartilhei isso com um colega. A resposta: “Tá doido, macho? Uma cargueira? Tá querendo entregar água, é?”.

A terceira lição, a mais dolorosa: a bicicleta, o mesmo transporte de duas rodas, se usada por um jovem de classe média para ir à faculdade ou se usada por um trabalhador escolarizado até o nível médio tem um significado completamente distinto. No primeiro caso, é um manifesto pela mobilidade, um sinal de esclarescimento, de engajamento à causa sustentável. No segundo, é um atestado de fracasso, a prova patente de que a pessoa não ascendeu à condição mínima de sucesso: ter ou trabalhar em um veículo auto-propulsado.

Concluí que o carro no meu uso cotidiano segue uma forma intensificada do princípio de Pareto, na qual ele é indispensável em menos de 10% dos meus trajetos, mas consome mais de 90% dos meus recursos empregados em mobilidade. Ficar cinquenta dias sem carro – àqueles que não pararam para calcular, eu adianto que isso representa 14% de um ano – me mostrou que é possível sim reduzir a sua utilização sem prejuízo, sendo bem atendido por outros modais de transporte.

***      ***      ***

Desde esse episódio tenho sonhado em ter uma cargueira, embora ache as cargueiras disponíveis no mercado brasileiro, as famosas barra forte e barra circular, extremamente inadequadas. Elas são instáveis, uma vez que a carga – e, portanto, o centro de massa do veículo – encontra-se muito alto. Além disso, a carga é posicionada ou à frente da roda dianteira ou à ré da roda traseira, nunca entre as rodas, o que bagunça o equilíbrio das forças atuando sobre os pneus, prejudicando de maneira perigosa as frenagens. Trata-se de uma falha perceptível para qualquer estudante no 3ª semestre de engenharia mecânica ou civil.

CARGUEIRA

Cargueira brasileira

Na Europa é comum outro tipo de bicicleta, com um projeto muito melhor elaborada. A principal referência é a Bakfiets, de origem holandesa, embora existam outras versões populares, como a Long John fabricada pela Monark, e as modernas Bullit, de origem alemã, e  Douze,  de origem francesa. Nessas bicicletas, a carga é posicionada bem próxima ao chão, o que reduz a tendência de tombamento. Além disso, a carga encontra-se entre o ciclista e a roda da frente, aumentado simultaneamente os esforços sobre ambas as rodas, sem a tendência de empinar ou embicar a bicicleta.

Bakfiets

Bakfiets

logn john

Long John

bullit

Bullit

douze

Douze

Não há nenhuma alternativa comercial industrializada em série no Brasil. A única que foi amplamente divulgada é extremamente cara e importar algum dos modelos acima é proibitivo face a todos os encargos de importação. Só resta torcer que, com a popularização da bicicleta, aumente a demanda por bicicletas cargueiras e que isso implique em pesquisa e desenvolvimento desses modelos por aqui.

Pessoas que roubam e pessoas que devolvem

Casei. Oficialmente sou um homem casado há exatos doze dias e, pra ser sincero, isso me agrada bastante. Não estou aqui para dar plantão da minha vida afetiva, mas acho que há um par de reflexões que surgiram ao longo desse processo de noivar e casar que merecem ser compartilhadas. Tivemos o privilégio de oficializar o casamento com uma juíza de paz que tinha o dom da palavra. De tantas coisas que ela falou, uma se sobressaiu: existem pessoas que nos roubam de nós mesmos e existem aquelas que nos devolvem.

Parece-me que a vida é um processo contínuo de fragmentação, no qual cada percalço é um arranhão que lentamente nos arranca um pedaço que cai pelo caminho. É perfeitamente possível caminhar e juntar os próprios cacos, mantendo-se inteiro à força da vontade, mas qualquer um é capaz de adivinhar por experiência própria ou intuição que este não é o melhor método. É doloroso, é fatigante, exige uma carga enorme de determinação e na maior parte das vezes o resultado passa longe de ser satisfatório.

Algumas pessoas, as que nos roubam, só fazem intensificar esse processo. São hábeis em acrescentar espinhos à senda já pedregosa, aumentando ainda mais a quantidade de fragmentos caídos, nos destituindo lentamente daquilo que nos constitui. Ao fim de alguns passos com esses indivíduos, pouco sobra daquilo que éramos no início da caminhada. Penamos em nos reconhecer, de tanto que nos foi tomado.

Outras pessoas nos devolvem. Elas gentilmente recolhem os cacos e os recolocam em seu lugar. São muito mais talentosos em nos reabilitar do que nós mesmo, pois enxergam aquilo que tínhamos de melhor antes. Ou então anteveem tudo de bom que podemos nos tornar. De uma ou de outra forma, nos resgatam e nos ajudam a progredir e a nos apropriar de novo de nossas vidas.

Tive a sorte de casar com alguém que me devolve.

 

Sonhos

A bola terminou sua trajetória trôpega e desorientada. Rolou mansamente para debaixo do banco onde a criança olhava o céu com legítima cara de passagem: calma, perdida em pensamentos, alheia a tudo o que acontecia a seu redor. Alheia inclusive à bola que acabara de tocar preguiçosamente sua perna. Não tardou para que o autor do chute, um menino suado e vivo, viesse para tirar-lhe do seu devaneio.

– Ei, você!

– …

– Ei!

– Você é surdo ou o quê!?

A fisionomia mudou, os olhos recuperaram o brilho e subitamente a criança estava de volta ao mundo real. Um mundo onde aquele garoto de olhar impaciente aguardava uma resposta.

– Oi. Você está falando comigo?

– Estou! Como você é distraído! Você pode me passar a bola?

– Você tem dois braços e duas pernas, por que você não vem aqui buscar? – sorriu.

– Além de lesado, você é um chato! – resmungou ressentido com a provocação.

– Talvez. – novo sorriso.

Ao perceber que não podia esperar nenhuma cooperação para recuperar a bola, o garoto se aproximou. Pegou o brinquedo, aninhou-o debaixo do braço, enxugou o suor do rosto usando a camiseta encardida e sentou-se do lado do banco. O outro menino começava então a entrar naquele estado em que fora encontrado, com os olhos baços e o lábio semi-cerrado. Decidiu interrompê-lo novamente para não ficar sem companhia.

– Você gosta de futebol?

– Não muito.

– Por quê? Você não sabe jogar?

– Na verdade sou meio perna de pau. – e não conteve uma gargalhada.

– Então o que você faz? Vôlei. Vôlei é esporte de menina.

– Eu não jogo bola.

– Então do que você brinca? De esconde-esconde? Pega-pega?

– Também não.

– Caramba, você deve ter uma vida muito chata!

– Por quê? Eu estava brincando quando você chegou.

– Você estava quase dormindo, isso sim!

– Mais ou menos.

– Como você brinca então?

O garoto inspirou, piscou os olhos um instante e deu um meio-sorriso quase imperceptível. Com ajuda dos braços virou um pouco o corpo para o outro garoto.

– Eu sempre tive muita imaginação. Minha mãe dizia isso. E minha professora também. Eu sempre fiquei muito chateado por vivermos em um mundo tão sem graça. Você sabe, nos livros e nos desenhos tudo é possível. Os animais falam, existe vida em outros planetas, existem criaturas fantásticas, podemos voar e tudo o mais. Eu me acostumei a enxergar as coisas como se fossem um sonho. As pessoas também, eu enxergava as pessoas como se fosse um sonho. – e parou.

– E o que mais? – Curioso com aquilo e desnorteado pela parada súbita, o outro garoto incentivou-o a continuar.

– Você nunca sonhou? Nos sonhos tudo é possível. Eu poderia olhar pra você e imaginar que você é um elefante! Eu poderia criar o que eu quisesse. Nos sonhos, cada coisa e cada pessoa poderiam fazer o que eu quisesse. Assim, eu não era obrigado a viver nesse mundo onde quase nada é possível. Bastava eu enxergar as coisas como um sonho e tudo ficava mais divertido.

– Você é estranho. Ainda prefiro jogar bola.

– Eu não consigo mais jogar bola. Eu te disse que era meio perna de pau. – e levantou suavemente a bainha das calças para revelar duas articulações metálicas no lugar onde deveriam ser seus tornozelos e as formas de madeira que davam forma aos seus sapatos.

Ante o olhar perplexo do outro garoto, disse:

– Hoje eu me enxergo como se eu fosse um sonho.

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Suspiro fundo

Linhas e mais linhas em negrito mostram a enorme quantidade de emails que tenho que dar conta no começo de cada jornada. Uma delas me chama a atenção. No meio das linhas mal escritas e endereçadas a inúmeras pessoas relacionadas em graus variados ao tema abordado estava uma acusação infundada, e contra mim. Por sorte, tratava-se de algo que podia facilmente ser esclarecido. Tec, tec, tec. Os dedos sapateiam sobre as teclas duras, a atenção difusa, entre uma tarefa importante e outra. Dados, datas, emails antigos: em alguns minutos resgato todas as informações necessárias para me explicar e redijo um texto que, de tão objetivo e direto, chega quase a ser didático. Envio.

Novo email. Nova acusação, novamente infundada, nenhuma novidade. O mesmo acusador. Os mesmos destinatários. Respiro fundo ante a mudez cúmplice de todas as pessoas presentes naquela conversa virtual e que poderiam esclarecer tudo rapidamente com uma mensagem, mas que, por alguma razão que ignoro, preferiram deixar a agressividade escalar. Cara (esse é meu vocativo quando falo comigo mesmo), respira fundo, resista a essa tentação de se transformar em vítima e achar que estão todos contra você. É só um mal entendido. Tem que ser um mal entendido. As pessoas hoje são tão afobadas e lêem tudo tão apressada e descuidadamente que aquele tratado de filosofia que você escreveu no email passado deve ter sido sumariamente ignorado. Tec, tec, tec. Suspiro fundo. Dados, datas, emails antigos: me vejo subitamente na posição de ter que me defender de acusações esdrúxulas.

Novo email. Mesmo remetente. Destinatário único: eu. Pedido de desculpas contrito. Justificativas variadas. A afirmação de que todas as suas ações foram guiadas pelo desejo de um bem maior. Respondo, com a mesma educação afetada que fui capaz de encontrar Deus sabe onde, que está tudo bem e que em nenhum momento levei aquilo para o pessoal – porra, cara… nessa aí tu mentiu feio! – e que tudo estava devidamente esclarecido.

Após algum tempo de reflexão, de energias dispensadas ao trabalho e à leitura de coisas que me dêem prazer, troco a aba do cliente de email pela aba de redação do blog. As emoções não parecem querer entrar em consenso e dizer quem é quem no meio da confusão na minha cabeça. De um lado, pulula o alívio por essa história toda ter acabado – Cara, tem certeza de que acabou? E se for só o começo? – do outro, um desconforto criado pela minha crescente descrença nas pessoas e nas instituições. Não todas as pessoas e todas as instituições, claro – eu me digo – mas sem conseguir tirar da cabeça os maus exemplos recentes coletados nesse risível jogo de influência e poder. Um jogo do qual eu não me sentia de forma alguma vencedor, mas do qual temia que meu interlocutor se julgasse perdedor.

Um único pensamento aflora clara e inequivocamente no meio da minha confusão: cara, evite ser como as pessoas que criticam publicamente e se desculpam em particular, pois há muito mais grandeza em criticar em particular e se desculpar publicamente.

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Aurora

O chiado do rádio e as vozes metálicas que soaram a seguir, indicando o começo da atracação do navio que chegava, me sobressaltaram. Eu dormitava, em uma região pastosa entre o sono e o despertar. As costas doíam, os olhos coçavam: dez horas depois do início do meu plantão, meu corpo pagava o duro preço da vigília. Fechei o colete, pus o capacete, saí do carro e fui atingido por um vento matinal insuspeitamente gelado para estes dias quentes de verão.

O navio se aproximava preguiçosamente, o costado negro se confundindo com a noite, deslocando mais de noventa mil toneladas de água com seu corpanzil metálico. Lentamente aproximava-se da beira do cais e, a despeito de tal lentidão, chocou-se com estrépito contra as gigantescas defensas de borracha, fazendo-as ranger e se contorcer de uma maneira quase dolorosa. O trabalho dos amarradores começava, arrastando cordas tão grossas quanto o braço de um homem, ainda mais pesadas por causa da água salgada que as encharcava ao serem lançadas.

Dali até o fim da manobra, ainda esperaria uma boa meia hora, tempo em que o frio e o cansaço continuariam a me abater. Lutava internamente contra todos esses desconfortos, intimamente procurando entender as razões que me levaram a querer esse emprego.

O último cabo foi encapelado em um dos cabeços, as grossas colunas de aço que seguram o navio no cais. Nada mais me prendia ali. Contudo, estaquei. O sol, ainda escondido pelo quebra-mar, tingia o céu de púrpura, vermelho e dourado contra o azul imaculado que só os primeiros minutos do dia tem. Sempre pareceu-me que o nascer do sol é mais límpido e belo que o pôr do sol. E esse era espetacular! A aquarela celeste refletiu-se no negro costado do navio, que outrora me parecera tão frio e desprovido de vida. Ocorreu-me que enquanto eu me deleitava com aquela imagem, a maior parte das pessoas dormiam. Aquele nascer do sol era meu, como são meus todos os que eu presencio durante minhas madrugadas de trabalho, ainda que tão pouco frequentes sejam as vezes que eu tenha permitido me encantar assim. Saco a câmera e registro a cena.

Entro no carro renovado e, enquanto dirijo pela linha reta de quase três quilômetros que me separa do continente, sou obrigado a pôr em cheque a minha ingratidão e suavizar a carranca. A pergunta de uma hora antes volta à cabeça: afinal, por que eu aceitei esse emprego? As respostas começam a surgir, ainda tímidas, mas sem esforço.

Porque eu trabalho no setor da economia que há 3500 anos, ou até mais, define quem são as potências mundiais. Um poder tão importante, que mereceu a criação de um vocábulo para descreve-lo: talassocracia – do grego, o poder pelo mar. Uma atividade que ligava lugares remotos e promovia o diálogo entre pessoas de etnias e credos os mais diversos muito antes de inventaram a palavra globalização.

Porque eu trabalho em algo que é responsável por tornar possível nosso acesso a cada produto que conhecemos, dos mais simples e discretos até os mais vultosos e imprescindíveis. É graças ao comércio marítimo que neste momento usufruo das minhas roupas, dos móveis e, inclusive, do computador onde digito este texto. E é graças a ele também que você consegue ler este texto agora.

Porque eu tenho o privilégio de assistir a auroras belíssimas, esse espetáculo diário que passa despercebido pela maior parte dos mortais.

aurora

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Babel

Dale Carnegie diz que não há som mais doce para alguém do que seu próprio nome. De fato, é muito bom saber que o interlocutor está se esforçando para chamar-lhe pelo nome e não por um vocativo que valeria para qualquer outra pessoa. E quando sequer se sabe o nome da pessoa com quem falamos, qual seria então a palavra que tocaria o seu coração?

Quando eu estudei no exterior, eu tive oportunidade de cruzar com pessoas de inúmeras nacionalidades. Era comum aprender e ensinar algumas expressões básicas com pessoas de cada nova nacionalidade que encontrava. Cerca de 20% delas eram cumprimentos e outras expressões cotidianas e 80% eram palavrões. Apesar de aprender palavrões ser divertido, o aprendizado mais rico sem dúvida foi cumprimentar cada pessoa que eu encontrava no seu próprio idioma. Naquela época eu passei a desconfiar que seria esse então o som mais doce do mundo, quando alguém completamente alheio à sua cultura se esforça para lhe cumprimentar da maneira mais direta e eficaz que alguém pode fazer: na sua língua.

Anos depois, cá estou, trabalhando em um porto e encontrando estrangeiros diariamente e finalmente confirmando minha teoria. Apesar de o inglês ser a língua padrão nesse meio, é nítido a forma que o rosto das pessoas se irradia quando fugimos à regra. Por esses últimos dias subi a bordo de um petroleiro grego recém atracado. Enquanto eu estava entretido observando a manobra de outro navio, um dos oficiais de convés passou por mim e falou em português alto e claro “olá, patrício!”. Eu disparei um “kalispera” no mesmo instante, o que o fez se deter, apertar minha mão e abrir um sorriso muito maior do que os 24.000 m³ de óleo estocados debaixo dos nossos pés.

Amazon Brillance

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A barreira idiomática esconde o fato absurdamente evidente de que somos todos humanos e que isso nos torna muito mais semelhantes do que as diferenças de idioma ou cultura possam aparentar.

Alguns metros abaixo da linha d’água, em um navio carregado de pás eólicas, um filipino torra castanhas de caju sobre um fogareiro improvisado com uma latinha perfurada preenchida com álcool. Ele tem a mesma expressão que uma criança toda lambuzada teria se fosse apanhada debaixo da cama com uma lata de leite condensado e a prova do delito, o prego que usou para perfurá-la. Magandáng umaga!

Um coreano em roupas imaculadamente engomadas procura com ar perdido e olhos ironicamente arregalados alguém que possa atendê-lo, penando para encontrar alguém que fale inglês. 안녕하세요!

Um indonésio pede carona no píer, o expediente no navio que funciona como uma usina de regaseificação terminou há pouco tempo, o transporte demora a passar e ele arrisca levantar o polegar para mim quando eu passo. Num inglês macarrônico, misturado com um português não muito melhor,  ele diz que está voltando para casa, onde sua esposa brasileira o espera. Selamat tinggal!

Seis chineses tentam malandramente me convencer a deixá-los subir a bordo com 300 kg de bananas para consumo próprio durante a próxima pernada da viagem. 請慢用!

Iluminados por um pôr-do-sol dourado e róseo, na popa de outro navio chinês preguiçosamente aguardando sua desatracação, dois marinheiros pescam os seus jantares. Eu deixo passar a pequena transgressão ao regulamento, que proíbe a pesca no terminal, e pergunto quantos eles pegaram até então. Um deles faz um ar tristonho, levanta um dedo e eu desejo melhor sorte. 祝你成功!

Nessa Babel, às vezes esquecemos que todos somos criaturas capazes de sentir medo, fome, saudades, alegria… Incrível como basta um cumprimento para nos lembrarmos disso.

Bom dia!

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Ponto de inflexão

Ponto de inflexão: é um ponto sobre uma curva na qual a curvatura de uma função matemática troca o sinal.

Definições matemáticas à parte, um ponto de inflexão é uma guinada. Um intervalo temporal ou espacial no qual um determinado acontecimento muda repentinamente de tendência, o que não significa que o próprio acontecimento mude de maneira igualmente brusca. Em uma estrada, este seria o ponto em que saímos de uma curva e estamos prestes a entrar em outra, quando o volante está temporariamente alinhado com o eixo do carro. Tanto faz se a curva que nos espera é aberta ou fechada, mas definitivamente é uma curva para o outro lado. A nossa vida é da mesma forma, é sinuosa e cheia de meandros mais ou menos perceptíveis, porém nós estamos ouvindo o rádio, conversando com os outros passageiros ou assoviando e raramente percebemos quando eles passam.

Mas algumas vezes o ponto de inflexão é boçalmente visível, principalmente naquelas em que envolvem tomadas de decisão, e justamente por isso é assustador. Nestes momentos somos agraciados com a percepção clara de que qualquer que seja a decisão que tomarmos ali, toda a nossa vida futura vai tomar um rumo completamente diferente da tendência que vinha se desenhando até então. Se você pega o desvio com a placa onde se lê “sim”, as coisas vão mudar muito. Se pega o da placa “não”, ela também vai mudar muito, mas de um jeito diferente. Se você fica indeciso e não pega desvio coisa nenhuma, atravessa o acostamento como uma bala, sai do asfalto, bate com uma roda numa ribanceira e capota: eivtou a decisão, mas não evitou a mudança.

Meu ponto de inflexão mais recente foi um telefonema que não durou dez minutos e que exigia um “sim” ou um “não”. Qualquer uma das duas respostas implicaria em consequências severas na minha vida profissional e emocional que seriam sentidas a médio e longo prazo. Ambas as respostas mexiam profundamente com convicções, planos, sonhos e conquistas. Há ganhos, há perdas e há, sobretudo, incerteza. As duas estradas se desenharam na minha frente, tão próximas e tão breves quanto o tempo necessário para balbuciar uma resposta monossilábica que me conduziriam a uma delas.

Descartes disse “penso, logo existo”. Discordo. Decido, logo existo. O que é nossa vida senão o somatório dos intervalos entre uma decisão ou outra, que a incerteza e o frio na barriga, que a ausência de um horizonte ao qual possamos nos agarrar ou um itinerário que possamos seguir? O que nos descreve melhor do que as decisões que tomamos? Cada uma dessas tomadas de decisão importantes demandam um mergulho em nós mesmos, um resgate dos nossos valores e dos nossos sonhos para que eles nos sirvam de guia.

As rodas da vida neste momento apontam para a frente, mas o volante ainda gira por entre minhas mãos frouxas e roça na ponta dos meus dedos. A estrada que eu rejeitei, nunca saberei onde vai dar. A placa que eu escolhi ficou para trás. Outras virão.

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O contador de histórias

Uma janela virada para o pôr-do-sol, Vênus iniciando sua jornada rumo ao horizonte poucos minutos depois de se tornar visível. O movimento dos astros e o acendimento dos postes de iluminação pública.

Uma cozinha, um forno. Farinha de trigo, fermento, água e sal. Ingredientes espalhados pela bancada, enquanto o rolo de massa transformava volumes informes em pizzas.

Um carro azul e possante, um sol nascente atravessando o para-brisas e ferindo os olhos. Um trajeto de 3 km em dez minutos, às vezes até cinco minutos, dependendo da impaciência característica do condutor.

Essas foram algumas das minhas salas de aula. Nesses lugares e situações ouvi desde cedo histórias tão fantásticas, que só podiam ser fruto de uma vida sacolejada com violência em doses iguais pelo acaso e pelo destino. Além da óbvia inclinação a contar e ouvir histórias, eu herdei um patrimônio imaterial muito mais difícil de definir em palavras.

Aprendi a ser homem, a compreender que a dor faz parte da vida e que cabe a nós passar por isso com dignidade. Que se render e deixar que a vida siga seu curso e as circunstâncias tornem-se maiores do que nós mesmos até pode parecer a saída mais fácil, mas não é. Meu professor tornou-se órfão aos treze anos e encarou as vicissitudes da vida a despeito da fragilidade de sua situação, ele sabia como enfrentar isso.

Aprendi que o maior patrimônio de um homem não é o que ele tem no bolso, mas o que ele lê nos livros. Que nenhuma desculpa é válida para deixar de se auto-aperfeiçoar, de aprender, de crescer. Um homem instruído talvez seja capaz de mudar o mundo, mas certamente é capaz de mudar o próprio destino. Meu mentor foi um homem que nunca parou de estudar, que sempre empreendeu os seus melhores esforços para saber mais sobre o mundo do que sabia na noite do dia anterior

Aprendi que nossos ídolos são imperfeitos, mas nem por isso são menos dignos de admiração. Que a humanidade é essa amálgama magnífica de vícios e virtudes. Meu pai foi um homem saído desse caldeirão: ao mesmo tempo nobre e imperfeito.  Alguém que eu aprendi a amar sem esforço a despeito das nossas diferenças.

Na sala de aula da vida ele conseguiu o impensável: ser um excelente pai, mesmo sem ter tido um pai de quem ele pudesse copiar o exemplo. A prova máxima disso está aqui: cinco filhos forjados na fôrma dele, avançando por essa vida apoiados pelos valores, exemplos e memoráveis “carões” que recebemos dele. Um professor severo, mas nem por isso incapaz de portar-se com candura.

Seu Aureo enfrentou o câncer com muito estoicismo. Nunca escondeu a doença com eufemismos. Chamava-a pelo nome, muitas vezes para o choque e constrangimento de algumas pessoas em sua sinceridade e pragmatismo. Enfrentou-a como enfrentara os outros tantos golpes que recebera da vida: com bom humor e uma dose silenciosa de confiança.

Foi embora amado, cheio de amigos. Teve uma vida que foi possivelmente a história mais incrível que eu já ouvi.

Pai, nós somos lhe somos muito gratos e sabemos que quando o reencontrarmos você estará nos esperando com uma pizza, um cálice de vinho e uma excelente história para nós contar. Até lá escreveremos nossas próprias histórias, as histórias que têm você como co-autor.

pai

*18/02/1931

+10/12/2012

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Os lutadores

Mediram-se de cima abaixo. Dois desconhecidos, pela primeira vez enfrentados e subitamente postos na condição de antagonistas, consequência inevitável da prática da luta. Em frações de segundo seus olhares se deslocaram rapidamente do rosto que estava à sua frente para a faixa colorida ao redor da cintura e novamente para o rosto. As mãos esquerdas fechadas tocaram as mãos direitas espalmadas em um breve cumprimento que precedeu a posição de combate. Punhos erguidos, pernas afastadas, semblante fechado. No momento em que a perna do primeiro lutador deixou o chão em um movimento enérgico do quadril, eles ainda se avaliavam.

A luta, tal qual a dança, é uma prática coreografada e bela à sua própria maneira. Diferem-se pelo seu fio condutor: graciosidade contra marcialidade, estética contra prática. É um balé de ataques e esquivas. E assim os dois lutadores alternavam-se, repetidamente abaixando-se ao rés do chão, evitando por pouco centímetros o pé que passava zunindo rente às suas cabeças sem contudo perder o contato visual com o atacante. Tão logo o adversário houvesse recuado, endireitavam rapidamente o tronco e desferiam, por sua vez, um golpe de perna visando à cabeça.

Naquele momento não havia indulgência na velocidade e no poder dos golpes, não era tão somente a prática didática de uma técnica de combate. Era de fato um combate. Não declarado e sem contato físico, mas ainda assim um combate. Em poucos instantes ficou claro para ambos que eles procuravam o limite um do outro, ao mesmo tempo em que tentavam postergar ao máximo a própria fadiga. De certa forma, o objetivo era ganhar, mas ganhar o quê? E por quê? Qual sentimento os motivava a atacar com tanta ferocidade e suportar com tamanha tenacidade os rigores físicos daquele exercício? O orgulho, a necessidade de superação, a agressividade?

Resfolegavam e pingavam suor, mas ainda assim mantinham o ritmo. Ou chegavam mesmo a aumentá-lo, difícil dizer. Operava-se uma mudança gradativa e significativa: o antagonismo virava respeito e admiração mútua. O homem busca a similaridade, a semelhança, a identificação com o outro. A suprema ironia é que mais frequentemente do que imaginamos encontramos isso nos nossos oponentes. Tratamos com deferência aqueles que se mostram capazes de duelar conosco em igualdade de condições. Sentimos empatia por aqueles que dignamente lidam com as tribulações e os desafios que lhe são impostos e a empatia é tanto maior quanto mais semelhantes forem aos desafios que nós mesmos enfrentamos. Por essa ótica, lutar contra alguém é de certa maneira lutar junto a alguém, pois ambos os lutadores enfrentam simultaneamente as mesmas dificuldades: os ataques que um impõe ao outro. Por conta desse raciocínio enviesado, dessa forma de avaliar o mérito, nós paradoxalmente  passamos a gostar daquele que é justamente o responsável pela nossa própria dificuldade, daquele que ao competir conosco nos tira de nossa zona de conforto e nos obriga a evoluir. A competitividade, a despeito do que possa parecer a priori tem uma capacidade poderosa de congregar.

Interromperam o exercício com um novo cumprimento. A respiração ofegante não deixava esconder que havia sido um exercício igualmente duro para os dois, um desgaste que ia além do que estavam habituados em suas rotinas. Quebraram o protocolo e trocaram um aperto de mão. Sem que houvessem trocado uma única palavra, já não eram mais desconhecidos.

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